ser mãe é padecer no paraíso…

neurose y palavras.
10 min readMay 10, 2020

--

Durante muitos anos, eu dediquei essa data para minhas mães: minha mãe e minha avó, as mulheres que em parceria me criaram. Esse ano, eu resolvi dedicar o texto da maternidade à mim, à Luna e todas as outras mães/mulheres que se sentirem representadas nesse texto.

eu aos 6 meses de gestação.

Essa sou eu, aos 16 anos. Nesse dia eu estava extremamente cansada após outro dia comum da minha rotina: acordava às 5:30h para pegar o busão e ir pra escola, estava no 2º ano do ensino médio. Chegava na escola por volta de 7h e entrava na sala e só queria sair dela quando tocasse o sinal pra ir embora. Eu tinha vergonha de exibir minha barriga pelos corredores, os olhares e comentários de outros adolescentes, me fizeram chorar silenciosamente dentro do banheiro inúmeras vezes. Eu saia da escola às 11:45h e ia voando pra parada de ônibus pegar o busão pra ir pra casa, às 13h eu tinha que estar no estágio. Por vezes, me sentei nos meios-fios das ruas porque eu andava rápido demais e ficava tonta com o sol rondoniense rachando na muleira. Nessa época, eu morria de orgulho por estar estagiando no Tribunal de Justiça e conseguir pagar as contas que era necessário fazer: o enxoval da criança. Não era fácil e foi ficando cada vez mais difícil sustentar a escola com o estágio e a gestação. Eu morava bem pertinho do Tribunal de Justiça, as caminhadas que no início eram de 5 minutos, foram se tornando 10… 15… 20 minutos e, eu me sentia um completo fracasso e sentia que eu ainda não fazia o suficiente. Eu persisti no estágio e na escola até o início do 8º mês de gestação, fui sincera com minha mãe e a minha obstetra: eu já não suportava mais meu peso, o peso da barriga e quem eu havia me tornado. Pedi desligamento do estágio e lembro de ter chorando demais antes de entregar o termo porque era a única coisa que fazia eu me sentir uma adolescente “normal”.

Minha mãe sempre me disse que não seria fácil e que estaria ao meu lado para o que desse e viesse e, ela esteve. Ela sabia na pele o que era estar grávida quando adolescente, afinal ela engravidou de mim aos 17 anos, mas sofreu uns rolês bem mais pesados que os meus… Eu tive vários privilégios: tinha minha mãe ao meu lado, tinha plano de saúde pra fazer o acompanhamento pré-natal, casa pra morar, a bebê ganhou muitos presentes e mimos por ser a primeira neta e bisneta das famílias. E minha mãe não teve quase nada disso e sei que também existem algumas feridas nela que por mais que ela diga que “a vida não pode parar, bola pra frente”, tem muita coisa que ainda sangra nela. E a gente precisa enxergar nossas mães como pessoas reais que sentem dor, choram, amam, se frustram e que também tem suas preocupações e questões.

Ninguém nunca me disse que a maternidade era fácil, mas também ninguém nunca me disse que ser mãe não anulava e nem escondia a mulher que ali nasceria. Só me contaram isso aos 22 anos, em processo terapêutico e a Ana Suy também continua me contando nos textos dela, inclusive me contou que “ser mãe não é ser mulher e ser mulher não é ser mãe”, me contou também que ser mãe é estar atolada de satisfação, tanto é que dificilmente encontra-se prazer nisso. Já dizia a psicanálise, prazer e satisfação não são a mesma coisa. E a quantidade que mães por aí que não sabem disso e morrem se culpando por querer sentir prazer nessa vida, eu garanto que não são poucas!

Eu gostaria que tivessem me contato essas coisas antes, talvez eu tivesse carregando um saco de culpa bem menor do que carrego hoje… Mas ainda vou chegar nessa parte.

19.09.2013, o dia em que minha lua nasceu na terra.

Estourou a bolsa, dei entrada no hospital. Dormi a noite inteira, não senti uma contração e me senti menos mulher por não conseguir dar à luz a minha própria cria, que carreguei por 39 semanas e, isso acabou comigo e só anos depois que eu teria noção disso. Fui ao centro cirúrgico relutante, não queria cesária, mas já eram horas de bolsa estouradas e isso poderia fazer com que a bebê sofresse. Minha obstetra foi clara e me trouxe a consciência: “não podemos arriscar parto normal, você tem 20 kg à mais que normal e teve pico de pressão alta, precisamos ir para o centro cirúrgico agora”. Eu lembro de sentir muito medo, um medo paralisante e a única coisa que eu pensava era: “caralho, chegou a hora! eu quero a minha mãe!”. Chorei sentada na maca no centro cirúrgico, a equipe médica se preparava e só se preocupava no show do Metallica que iria acontecer aquela noite no Rock In Rio. Me senti desamparada duplamente, sem ninguém conhecido para me dar suporte e sozinha numa sala fria pra cacete, até chegar uma enfermeira e me perguntar sobre quem eu era e a única coisa que soava na minha cabeça era “sei lá mana! sou a mãe da luna… que tu quer que eu responda?”, mas sabia que ela só queria ser cordial e me amparar de um choro dolorido que exalava uma sensação imensa de abandono. Numa quinta-feira, às 9h eu e toda a equipe do centro cirúrgico trouxemos a Luna para este mundo, pesando 3,800 kg e medindo 49 cm. E até hoje lembro da sensação de alívio quando tiraram a Luna, daquelas coisa que não tem como explicar só sentir.

Deu-se o maior nó na minha cabeça: por que eu não me sinto feliz e realizada como eu ouvi a gestação inteira um milhão de mães falando sobre como era incrível ser mãe e que eu sentiria um amor me transbordar quando eu visse o rostinho dela pela primeira vez? Eu não senti nada disso e a culpa que eu sentia se tornaram correntes, que arrasto penosamente até hoje. Eu tinha uma dificuldade imensa de falar, conversar sobre coisas profundas e nunca tinha conseguido abrir isso pra ninguém além da minha primeira terapeuta.

Hoje, eu compreendo que muitas das coisas que senti quando ela nasceu eram da situação em que eu me encontrava. Eu via a minha criança como o empecilho da minha vida. E essa impressão grudou no meu inconsciente e me desfamiliarizar dessa estrutura e a partir dessa tomada de consciência reconstruir essa imagem, levou alguns anos de sofrimento e de dor.

Foram anos depois que eu descobri que não existe instinto materno, que não existe mulher pronta pra ser mãe como vendem por aí… Uma mãe nasce junto com o bebê que ela pari. E é partindo dessa premissa que juntos irão construir inúmeros laços que irão se afrouxar, apertar e se desfazer ao longo da vida. E é com sensibilidade, respeito, união e amor que precisamos refazer, preservar e se atentar aos laços para que não virem nós e não prenda e nem amarre as subjetividades dos envolvidos.

amamentar é revolução.

Acho que de todos os meus desejos com a maternidade e todas as frustrações que vivi durante a gestação, a única coisa que eu não abandonaria seria a amamentação. Eu nunca me senti tão forte e tão incrível como mulher ao produzir leite e alimentar minha cria. Já ouvi mulher dizer que foi a pior experiência da vida. Já ouvi mulheres dizendo que o leite do peito é fraco e que a criança precisava de mingau pra sustentar. Eu já ouvi tanta coisa amamentando que hoje fico me perguntando: até onde vai o desejo de outras mães de reviverem esse momento de dedicação ao ser que ela pôs no mundo? Até hoje fico irritada com pessoas que palpitam demais e por mais estranho que pareça, virei uma palpiteira. Seu mundo gira tanto em torno desse bebê que o único assunto que você tem por vários meses e, arrisco em dizer, por anos que você só quer falar e dividir com alguém. Penso que, pode ser aí que esteja toda a questão do acolhimento de uma mulher que é recém mãe (ou não) e nem todo mundo está disposto a ouvir que seu bebê mamou 40 minutos em um peito, o esvaziou e caiu em um sono profundo e você desesperada de dor na outra mama que explode de leite e te causa até dores. E depois voltei ao lugar de incômodo de tanto palpite e hoje só falo se alguém perguntar ou pedir ajuda…

Eu amamentei a Luna até os 3 anos dela. Meu lado mãe se orgulha desse feito, por ter persistido depois todo nossos sofrimento ao iniciar a amamentação. Meu lado semi-psicóloga nem tanto pela quantidade de teoria que consumi à respeito disso. Mas foi uma das experiências mais fodas da maternidade. Ela morria de se divertir enquanto mamava e eu morria de satisfação por ainda servir como alimento… Tá vendo porque meu lado psicóloga não curte isso?! A maternidade é um bagulho louquíssimo! A Luna sempre foi muito compreensiva e quando expliquei que não poderíamos ter aquele momento de amor, mas que poderíamos reinventar, ela entendeu e quem ficou choramingando pelos cantos da casa e se sentindo menos útil, fui eu. A partir disso, eu aprendi a ser fonte de amor e de alimento de outras formas…

Acredito que uma das formas de amor mais presentes e potentes entre nós duas é ensiná-la a ser uma pessoa que sente amor e se preocupa com o próximo. Aos poucos fui transformando essa fonte inesgotável de amor líquido, vulgo leite em outras coisas por exemplo, ensiná-la que existe feminismo e que merecemos ser tratadas como iguais. Ensiná-la todos os dias que o corpo dela é ela quem manda e que ela tem que amá-lo do jeitinho que ele é. Foi ensiná-la que os dentes que faltam em sua boca durante a troca e que foi motivo de piada na escola, vão se tornar dentes fortes e lindos e que ela é linda do jeito que ela é. E dentre tantas outras coisas que ainda irei ensinar, ser mãe é ser e ter uma fonte inesgotável de amor.

abril, 2019.

Ser mãe é padecer no paraíso… eu já padeci tanto, cadê o paraíso? O meu tá no sorriso, no carinho, na partida acirrada de uno, no bom dia que ela me dá pulando pra minha cama, é ela compreender que eu tô cansada e respeitar isso, é eu saber respeitar os momentos e as dificuldades dela. É levar ela para conhecer o mundo, dentro dos nossos limites. É compreender uma a outra e se amar, sem explicar só sentir… É ouvir dela e das pessoas que me conhecem e sabem das minhas batalhas do quanto eu sou uma boa mãe… Meu paraíso é pode dividir esse plano, é ter nascido nessa vida para gerar e parir o ser de luz que revolucionaria a minha vida! Ela nunca foi um empecilho, mas sim todas as minhas libertações e explorações das minhas novas nuances… A Luna sempre teve cheiro de liberdade… E ela foi a minha em muitas situações.

Foi graças à minha criança que eu tive forças para abrir minhas asas e voar buscando ser livre para lutar contra o patriarcado e as estruturas opressoras em prol de um mundo melhor para ela e para todas as outras que vierem após ela. Esse texto não é só para dizer as dificuldades da maternidade, mas é para mostrar um lado em quem nem todo mundo fala e que a grande parte das mulheres esconde por não querer parecer fraca diante de um desafio tão estarrecedor e cheio de surpresas que é a maternidade. É para dizer que nem sempre querer sustentar o mundo nas costas vai ter fazer bem, que é possível ser mãe e mostrar suas dificuldades e se mostrar uma mulher de carne e osso para sua cria. É necessário demonstrar que você também é passível de sentir amor, carinho, tristeza e dor para as crianças, para que te enxerguem uma super-heroína humanizada. Sem laço da verdade ou que tu saiba voar no sentido literal da coisa, mas que tu abra tuas asas escancare a portinha da gaiola e ensine teu passarinho a voar com as próprias asas e alçar voos que só ele mesmo pode voar. É mostrar que estará ali se der tudo certo para partilhar das vitórias e, se der tudo errado é para que lá que podem voltar para curar suas feridas e depois alçar voos cada vez mais longos até que você se torne só uma base de apoio porque o lar eles já construíram em outro lugar, em outro peito… Mas que no fundinho, tu saberá que sempre terá sido a primeira casa do teu passarinho.

Gratiamo, minha Luna, por me fazer querer ser todos os dias uma mulher melhor e uma mãe mais amorosa e paciente para você e para aqueles que algum dia possam vir!

“Enquanto eu tiver saúde, enquanto eu tiver de pé, enquanto a gente se amar…” (Vanguart)

--

--

neurose y palavras.
neurose y palavras.

Written by neurose y palavras.

escrevo como quem manda cartas de amor.

No responses yet