pertencimento.

neurose y palavras.
4 min readJun 17, 2024

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“é aquela percepção de alguém fazer parte de uma comunidade, de uma família, de um grupo, de uma nação.”, é a primeira coisa que aparece nas pesquisas do Google quando buscamos o que significa pertencimento.

talvez, tenha entendido essa noite passada que eu não pertenço mais a alguns lugares. nem alguns grupos, nem aqui nesse lugar que estou sentada em uma cama escrevendo esse texto enquanto sou cobrada para estender a roupa da máquina. há anos atrás em um devaneio com um ex-amigo escrevi assim:

o fim das contas, as relações irão desaguar nas fronteiras de lugar nenhum. uma memória, uma lágrima, um riso e até aquela angústia entalada na garganta fará lembrar das relações que se dão, se deram e que darão. relações são travessias de lugar algum.

ele não entendeu nada e pediu que destrinchasse esse pensamento, por pura preguiça, cortei a conversa com uma risada e disse que já estava fritando a mágoa por horas. mas ontem, ao entrar na casa que já fora minha (em partes), fui atravessada subitamente por esse devaneio. senti que eu já fui parte daquelas paredes, já vi beleza nas flores rosas trazidas com o vento que formam um tapete em sua varanda, já fui feliz conversando com as bananeiras e deitadas nas redes. fui parte da história daquela casa no momento mais importante da minha vida e repentinamente o chão se abriu sob meus pés e fui interrompida de realizar os sonhos que tinha em mente naquele lugar.

fui atravessada novamente pelo lugar que mais me dá pânico: o não-lugar. talvez, nesse momento, não consiga enxergar que ainda posso pertencer aquele sonho que fora nosso. só rolam lágrimas quentes pelo meu rosto quando penso no processo de enfrentamento de luto dos meus/nossos sonhos natimortos. com 17 semanas de gestação dessa casa que sonhamos tanto, os ruídos internos fizeram com que esse parto tenha sido feito as pressas com muitas dores e gritos de choro varando madrugadas. o fim se anunciou.

eu pari a mim mesma. ele pairou a si mesmo.
e assim, nós nos desencontramos e fomos vistos vagando dentro de nós-cegos dividindo escuridões e silêncios ensurdecedores conforme os dias de agonia foram tomando conta. há muito o que ser digerido… se é que é possível a digestão de sonhos mortos, não é mesmo?!
talvez, a gente consiga se reencontrar com planos mais concretos e menos angústia do não-dito e não-vivido mais pra frente. porque agora não sei se pertenço mais aos mesmos lugares que pertencia ontem.

eu tinha esse medo quando eu devolvi as chaves… de voltar e não me sentir mais ali… nem aqui… nem lá… mas e agora?! pertenço a algum lugar?
se as realções não pertecem a lugar algum e… eu?! e… nós?! e… você?!
meu estômago gela e dos meus olhos brotam novamente águas mornas e mais salgadas que antes.

em alguma instância, passei anos pertencendo a um abraço, a um colo… eu sabia que não interessaria o que acontecesse… se os braços que sempre me esperavam lá não estivessem, o silêncio me esperava. a casa grande cheia de cômodos vazios me esperaria com suas paredes cheias de bolhas de tintas amarelas de umidade. ela me esperaria… assim como um mini quarto de paredes azuis sujas de giz de cera preto também me esperava se aqueles braços não estivessem mais dispostos a me receber. e, mais outra vez, nos recebeu fazendo o máximo de coisas caberem num pequeno espaço.

tem sido difícil encontrar um lugar de pertencimento nesse instante. tem sido difícil não conseguir digerir as novidades de um amor que não tem mais um lugar. é difícil gerir as próprias emoções mas conduzir à luz as emoções de uma criança viva e magoada com a sua falta de pertencimento tem sido muito mais indigesta. a gente respira e chora juntas sonhando com o lugar de pertencimento que teremos logo quanto possível.

iniciei o texto sentindo que eu não pertencia a nada e nem a ninguém, mas talvez seja nessa inconstância da vida que encontre lugares para existir… seja dividindo lágrimas e angústia com minha filha de 10 anos que se sente despertencida por um rompimento e, seja justamente nesse sonho de pertencermos a algum lugar que será nosso. construído por nós duas e para nós duas. talvez, o pertencer seja muito mais palatável se sonhado junto com uma criança… com a que eu pari e com a que eu curei.

lembrar sempre que o pertencimento está dentro de mim e dos meus sonhos e, não dentro dos medos e da falta de coragem que eu conto a mim mesma em momentos angustiantes.

ah… velho freud, você e sua mania de fazer com que o analisando se escute em sua associação livre e produzindo uma fábrica de insights pertencente a si, né?!

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