pedaços.

neurose y palavras.
4 min readJun 24, 2020

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Ainda quando pequena fui quebrada em vários pedacinhos. E sempre me achei incompleta por isso.

Alguns pedaços eu já colei com o vidrinho de cola chamado autoamor, eu o conquistei em terapia e compreendendo a importância de me cuidar e me amar.

E tem outros que estão tão quebrados que viraram um pózinho. Às vezes parece que é uma poeira que me incomoda, coça minha garganta e a deixa dolorida. Talvez a garganta dói porque não tossi essa poeira enquanto falo pra pessoa que a levantou aqui dentro e somatizo tudo que sinto.

Às vezes penso que é vidro e transtorformo em cerol. Uso o vidro e a cola de autoamor, passo na linha que me segura voando lá no alto, como um papagaio avoado. E esse cerol corta os dedos de quem tenta segurar meus voos.

Outras vezes, eu só ponho panos quentes nos cortes feitos pelos pedaços quebrados e pontiagudos. Ponho o paninho quente pra aliviar a dor pulsante, mas não tenho coragem de tirar o pano de cima pra ver o tamanho de cada ferida. Então, mantenho o pano aquecido para aliviar a dor das feridas inflamadas e cheias de pus, que esperam ferozmente serem drenadas e cicatrizadas.

Outrora esses pedaços estão colados com uma cola dourada. Aquela técnica japonesa de colar porcelana chamada Kintsugi, onde dá pra extrair um significado lindo: admirar as belezas das cicatrizes que a vida me proporcionou. Ando cultivando umas sementes que encontrei quando comecei a quebrar o gesso que me prendia. Guardei todas elas em uma bolsinha e tô cuidando, regando e arrancando as ervas daninhas do meu jardim para por cada flor que já brotou ou brotará, no meu vaso reconstruído. Para que eu possa olhar aqui pra dentro e ver um jardim lindo e um vaso todo remendado com cola dourada. Que saiba reconhecer cada pedaço quebrado e saiba os caminhos que trilhei para poder reconstruí-lo.

Tem um pedaço meu, aquele pedaço que tem um coração que bate forado meu corpo, é aquele pedaço que eu carreguei 9 meses no útero. Esse pedaço tá sentindo uma dor insuportável que anda chorando todos os dias antes de dormir porque sente saudade, sente sua liberdade roubada e o medo de quem ela ama vire estrelinhas (sim, é assim que ela se refere à morte). Esse pedaço tem nome e vontade própria, mas cutuca uma parte em mim que sente-se impotente e desesperada quando se vê de frente à dor dela. E eu faço o que me cabe: dou colo, acolho, digo que a amo e que estamos juntas pro que der e vier. E talvez, eu deva fazer isso por mim também. Me acolher e me amar para acolher e amá-la com maior empatia e tranquilidade.

Existem alguns pedaços meus que eu não consigo catar e segurar sozinha. Toda vez derrubo esses pedaços no chão e eles se quebram mais ainda. Quando não derrubo, fantasio que dando na mão de quem escolhi dividir a vida por agora, pode resolver por mim. E no fundo, eu sei que é só fantasia e só eu posso cuidar desses pedaços. Mas no meio tempo, eu esqueço que ele também é um ser humano e tem suas próprias angústias e vazios para dar conta. E ninguém quer que o outro carregue os teus pedaços e preencha teus vazios.

Existem alguns pedaços meus que acredito estarem curados e prontos para serem colados no mosaico, e começo a acreditar que nada me abalará e esse pedaço virou aço, nada vai amassar ou enferrujar. E logo após qualquer ruptura da fantasia criada por mim, eu lembro que sou pele e sinto os dentes dele me morderem. Dói e sangra. Eu choro, me sinto indefesa e tudo não passa da fina camada entre a fantasia e a realidade. E antes de contar que me mordeu, ele me conta com os olhos. Ele me chama de linda e ama todos os meus pedaços quebrados, colados e reconstruídos. Ele quer ser transparente mesmo sabendo que pode me machucar e busca me dar a opção de escolher se quero ficar sabendo quem ele é ou se quero ir embora. E pede que apenas sejamos.

Também tem aqueles pedaços que estavam esquecidos no fundo do baú e resolvi deixar lá para esquecer, sempre achei que são antiquados demais. E a vida me faz atravessar caminhos que me fazem reivindicar aqueles pedaços e sacudir a poeira por ficarem guardados por muito tempo, mas eu não tenho coragem de sequer abrir o baú. E eu perco a chave dele, propositalmente. Às vezes, a chave aparece na minha mão depois de observar as fraturas em terapia. E aí eu jogo essa chave tão longe que só quero deitar na cama e cobrir a cabeça com o lençol, é regressão mesmo. O baú foi escancarado e nem precisou de chave pra abrir, só chegou a hora de cuidar dos pedaços: limpar a poeira e encontrar uma forma de colar eles um no outro.

E no fim, todos os pedaços citados aqui: os quebrados, os colados, os empoeirados, os que viraram poeira e vidro, o que tem um coração fora do meu corpo… Todos eles fazem parte de quem eu sou.

Todos esses pedaços fazem parte da grande obra de arte que é ser eu mesma… Eu sou o vaso remendado, um mosaico, uma tela pintada com sangue, lágrimas, gargalhadas e amores. Eu sou todos os amores que já passaram e passam por mim. Eu sou transformação. Eu sou obra de arte que nem todo mundo consegue repousar o olhar e ver além das explosões de cores e nem sabem interpretar grande parte das vezes e… nem eu sei. E talvez esse seja o grande segredo: ser partes para ser inteira!

E, como disse Guimarães Rosa: Viver é um rasgar-se e remendar-se!

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