o suco na panela

neurose y palavras.
3 min readJun 7, 2020

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Essa semana foi complicadíssima. Passei inúmeros dias com uma moleza gigantesca, dores de cabeça agudas, vomitei muito e muita dor no rim.

Eu comecei a escrever um texto sobre isso e tava com a cabeça cheia de caraminholas, jurando que era punição por ter engordado demais e inúmeras somatizações.

Ontem, passei o dia com o namorado e me senti mal do mesmo jeito, nada me relaxava e tudo doía. Eis que recebo a notícia: meu tio-avô é mais uma vítima desse vírus maldito.

Eu não sei até que ponto dá para regular essa sensitividade e ainda não aprendi muito bem entendê-la e ouvi-la quando se manifesta.

Todos os sintomas acima, sumiram após a notícia e logo caiu a ficha. Porra, não tinha nada do que eu achava que era. Dessa vez os sinais foram intensos e mais altos, eu não soube interpretar.

Eu passei a semana inteira pensando em morte e querendo morrer para me livrar de tudo que eu sentia fisicamente e essa angústia fuleira que embola meu peito todos os dias.

A morte foi anunciada e eu relutei em me deixar levar pelo sentimento de tristeza porque pensava que não tinha tanto vínculo assim com o titio… Até me lembrar do bendito suco na panela.

O prazer dele era ter SEMPRE um suco geladinho e docinho para oferecer. E se não tivesse, ele tratava de providenciar e fazer um pra você. Sempre na panela.

Essa memória foi atravessada por outras memórias da infância e embarquei em lágrimas doloridas dentro do carro na volta para casa… Lembrei do suco na panela, de todas às vezes que eu morri por 10 segundos ao atravessar o quintal da bisavó para o quintal do titio porque o cachorro da bisa te arrancava um braço se você chegasse perto dele. Das inúmeras vezes que eu cheguei mijando nas calças e gritava: “TIO, EU PRECISO FAZER XIXI, VOU USAR SEU BANHEIRO!” e ele sempre dava risada porque eu dizia ter medo de cobra no banheiro da bisa.

Lembrei também de todas as vezes que eu tava brincando na casa da bisa e ouvia o barulho inconfundível da moto do tio Dió atravessando o corredor entre a casa dele e da bisa. Lembrei também do diálogo que tive com ele que eu me perguntava como o cabelo dele era tão branquinho e tão sedoso. Eu cresci vendo o cabelo dele assim e jurava que ele tinha uns 200 anos e ele ria dizendo: “se a minha mãe não tem essa idade, como posso ter?” e eu fiquei constrangida mas depois ri junto. Das inúmeras vezes que eu assisti tv na sala da casa dele e ele sempre sentado na cadeira de balanço. Das inúmeras vezes que ele ficou parado na porta enquanto eu brincava com a netinha dele, que hoje é minha cunhada.

Eu vim embora para a capital no início da adolescência, perdi o contato porque voltei poucas vezes na minha cidade natal e perdi o suco gelado na panela, os diálogos e brincadeiras de quando eu ia lavar a louça da vovó no tanque, mas não sabia que tinha perdido até ontem à noite.

Mas ganhei formas de observar como lido com o luto e todas as tentativas vãs de fugir de tudo que se relaciona à morte alheia. E penso que foi mais um convite das ancestrais para que eu me conecte com essa sensitividade que ainda é pouco entendida.

O tio se foi com seu suco na panela e os cabelos branquinhos, mas ficou a reflexão para cuidar dos meus e como eu lido com esse distanciamento e o desejo de que ele faça uma passagem tranquila.

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Written by neurose y palavras.

escrevo como quem manda cartas de amor.

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