geladeira.

neurose y palavras.
3 min readMar 15, 2021

--

Nós somos como uma geladeira.

Se você parar para observar, tem como fazer essa analogia. A geladeira é divida em partes: congelador, gaveta de verdura, compartimentos para diversos itens na porta, porta-ovos, a gaveta abaixo do congelador e as prateleiras.

Quando você abre a porta de geladeira, logo se dá conta do que tem superficialmente. Tudo que está visível está exposto nas prateleiras. Assim somos nós. Quando abrimos nossas portas, geralmente mostramos a nossa superficialidade. Nas prateleiras é comum ficar tudo aquilo que usa com mais frequência. Queijo aberto, as melhores qualidades, as vasilhas com finais de comida do dia anterior, a propaganda de si, a manteiga, as máscaras que vestimos toda vez que estamos conhecendo alguém.

Ao deslocar o olhar para o outro canto da geladeira, olhando a porta vemos que dá para conhecer um pouco mais daquilo que as pessoas consomem no decorrer dos dias ou quase nunca… Ketchup, aquele lugar que não nos cabe mais, shoyu, a vontade de viver mais do que aquilo que já se vive, os ovos e o início da vulnerabilidade que nos fazer temerosos com o viver.

Na gaveta de verduras nós colocamos as batatas, os conteúdos medianamente complicados, as cenouras, aqueles momentos que insistem em impregnar na memória mas que nem foram tão bons assim, os tomates, a delicadeza do nosso ser, as couves, aquilo que mostramos quando estamos íntimos de outro, milho in natura e aquilo que geralmente brota ali e que terá serventia seja no prato ou na vivência.

Naquela gaveta abaixo do congelador geralmente ficam coisas que a possibilidade de esquecer o que foi colocado lá ou usar um pouquinho do ingrediente e da próxima vez que for usar parar diretamente na lixeira porque estragou. Talvez, esse lugar seja aquele lugar que jogamos nossas expectativas, presunto, possibilidade de mudança, requeijão, as antigas fantasias que acabam soterradas por novas fantasias e o queijo fechado.

O congelador é aquele lugar de difícil acesso. Aquele lugar onde se coloca polpa de frutas, questões que adoraríamos esquecer mas que em toda e qualquer possibilidade vem repaginada e pinga lá na gaveta abaixo dela, o restante do milho congelado, as tristezas e mágoas, as misturas do mês, possibilidade de olhar tudo o que somos sem barreiras físicas ou emocionais, cebolinha congelada e a aquele monte de coisa que geralmente não fazemos ideia de que estão lá. A noção do que se tem no meio daquele monte de gelo, feridas e dores só vem acompanhada de um longo caminho que (quase sempre) esquecemos que não é linear.

Bom, a questão que fica é a seguinte: e se a geladeira quebra?

O que faremos? Como iremos consertar? O que podemos fazer com tudo aquilo que tem dentro e o que vimos que somos?

A geladeira tem um propósito de conservar aquilo que se tem dentro com uma brisa que você escolherá a potência coerente com a quantidade de coisas que tem dentro dela. A gente não tem essa possibilidade na vida, se tem é quando se é alienado (ou não) para se dar conta da quantidade de coisas que atravessam tudo que somos.

Quando a geladeira quebra, a tendência natural é não abrir com frequência para conservar o que tem dentro e evitar estragar. Podemos pensar que deixando tudo dentro e evitar abrir vai conservar tudo sem quebrar ou destampar ou nos derrubar. A possibilidade de esquecer que também pode dar merda e estragar tudo que tem dentro geralmente nem se passa pela cabeça, ou se passa nem temos coragem de abrir e bancar que pode estragar tanto dentro da geladeira naquela brisa mínima como em temperatura ambiente.

Também é preciso entender que quando demora tempo demais para abrir a geladeira, pode se dar conta de que tem tanta coisa precisando de atenção que a tendência é se perder nesse volume de conteúdos e esquecer o caminho de acolher e como faz para tirar aquilo tudo sem que se estrague e demande mais tempo cuidando porque você já passou ali e sabe os caminhos que precisa percorrer.

Ou também passar o que pode ser passado para o congelador e sustentar a vivência daquele momento com tudo congelado e congestionado. E a partir disso precisa olhar e manejar os alimentos e os conteúdos estruturantes. E aí, é preciso tempo, calma, se permitir sentir as emoções que transbordam daí e esperar que na terça-feira ou qualquer outro dia o amparo do novo lugar que você encontrar também pode fazer sentido e te dar a possibilidade de conservar o que precisa ser conservado, jogar fora o que precisa ser jogado, acolher aquilo que já se foi e se acostumar que uma hora ou outra você vai precisar sair desse lugar e encontrar outro.

--

--

neurose y palavras.
neurose y palavras.

Written by neurose y palavras.

escrevo como quem manda cartas de amor.

No responses yet