sobre criação.
Aos 6 anos, eu não fazia ideia do que era pandemia, mas nessa mesma idade eu já sabia o que era trabalho infantil e sua proibição.
Aos 6 anos, eu ia para escola com minha mochila de carrinho toda brilhosa da Xuxa e meu sonho era poder ir andando sozinha, mas eu sabia que não podia porque existia uma narrativa na minha casa em que pessoas roubavam crianças.
Aos 6 anos, eu não sabia que a Tiazinha e a Feiticeira eram figuras femininas hiperssexualizadas com o intuito de distrair a população que consumia televisão aos domingos à tarde, mas eu as achava lindíssimas pela fantasia criada na minha cabeça infantil e repetia as coreografias e os trejeitos sensuais demais para uma criança de 6 anos. A situação era tão bizarra que foram feitos tamancos para crianças que acompanhavam uma máscara e um chicote em tamanho infantil. Minha avó me deu um desses e minha mãe quase infartou quando me viu hiperssexualizada e me lembro de chorar copiosamente quando meu chicote desapareceu.
Aos 6 anos, eu não sabia o que era feminismo mas sabia que existiam inúmeras pessoas que passavam fome e tenho recordações de chegar em casa aos prantos por ter escutado uma coleguinha de classe dizer que não tinha comido nada desde a hora do almoço do dia anterior e que ela não via a hora de comer a comida da merenda porque a barriguinha dela “estava falando mais alto que a vozinha da minha cabeça”.
Aos 7 anos, ouvi gritos e vi minha mãe aos prantos em uma felicidade que não cabia dentro dela, quando saiu o resultado da eleição em que o Lula tinha vencido. Eu não fazia ideia do que diabos fazia um presidente da República e, muito menos o que era um presidente. Todavia, sabia que se minha mãe chorava de felicidade era algo bom.
Eu cresci presenciando as políticas sociais do governo Lula pelas minorias. Tipo presenciar a criação do Fome Zero e ver o anúncio em horário nobre na televisão de quando o país comemorou a saída da linha da miséria.
Minha filha cresce presenciando as atrocidades do governo bolsonarista. Eu faço o que posso para poupá-la dos noticiários e jornais informativos, principalmente agora nesse período de pandemia e não tem sido fácil. Mas ela ouviu o presidente falando “e daí? Lamento, quer que eu faça o que?” para as 5 mil mortes, dia 28 de abril e ela disse “esse homem é aquele mal que eu escuto falar na igreja da minha avó.” Porém, essa afirmação dela é antecedente a essa fala do [insira aqui qualquer coisa condizente com o presidente]. Luna me viu gritar e chorar muito quando saiu o resultado da eleição de 2018, eu me senti fraca e impotente por vários dias à fio e, quem me consolou foi ela: “mãe, você fez tudo que podia! Eu até fiquei com a vovó vários dias para você ir lá na manifestação, lembra? Ele não, sempre vai ser ele não, mamãe!”
Em posição de mãe e de mulher, tudo que eu menos queria é que minha filha crescesse em um lugar que ser mulher é uma fraquejada. Ou que pessoas negras andam com alvo nas costas desde o primeiro dia de nascido e que são consideradas preguiçosas e tem seus corpos violentados e comparados ao peso de um animal. Não queria que ela crescesse em um lugar onde usa um slogan de governo alienador, nem que o presidente flertasse com o fascinazismo em horário nobre nas televisões e que nada fosse feito à respeito disso. Mas nessa mesma posição que ocupo é o meu papel mostrar para minha filha que ser mulher é ser resistência, que pessoas negras merecem respeito, amor e que suas vidas valem e importam muito. Ensino que toda forma de amor é justa e ensinei os vários modelos de família, para que ela pudesse compreender e não apontar dedo julgador. Ensino diariamente para ela que existem inúmeras outras religiões, que existem outros deuses e que cada pessoa é livre para fazer suas escolhas, incluindo ela que às vezes a “cabecinha fica bugada com as coisas que você fala, mas eu sei que vou entender melhor quando crescer”.
Faço o que posso para afastá-la da objetificação e hiperssexualização de corpos e que a liberdade seja naturalizada no crescimento dela. Faço além do que posso para mostrar para ela que a cor das nossas peles é diferente e que tá tudo bem por isso, mas que as pessoas podem estranhar e que isso não é e nunca foi normal. E nesse meio tempo, já chorei e caí no chão tantas vezes porque educar um ser humano com pensamento crítico é difícil e desgastante pra caralho! Porque é nadar contra à maré de criação conservadora imposta pelo patriarcado e lutar todos os dias por duas é foda, mas sei que dou o meu melhor.
Hoje aos 6 anos, a Luna sabe o que é feminismo e diz que é tudo que toda pessoa deve saber no mundo. Eu apresentei para Luna a história da Frida Kahlo, de forma errônea pois foi ferramenta para assumir para ela minha bissexualidade eu não sabia como falar e a Frida foi a figura de potência que eu encontrei. Foi ouvindo a história da vida de Frida que ela conheceu conheceu algumas palavras: revolução, liberdade e lealdade. Decidiu se fantasiar de Frida no Carnaval e fez muito sucesso no bloco de rua, achou isso incrível e ficou radiante. E se fantasiou na festa da escola e lá não foi reconhecida e disse que explicou para todos o que era e quem foi a Frida. Pedi a explicação e ela disse “ué, mãe, a Frida foi um artista que pintava seus próprios retratos e foi uma grande revolucionária” . E de certa forma, isso acalma meu coração. Ela decidiu abandonar o tema de Cinderella e quis fazer sua festa de 6 anos com o tema Frida Kahlo. E foi simples, mas lindíssima!
Aos 6 anos a Luna já sofreu ataques gordofóbicos, assim como eu. E doeu vê-la nessa posição e doeu muito mais ouvi-la dizer que queria fazer dieta depois que línguas malditas lhe dizerem que ela não caberia nas roupas novas. Aos 6 anos que a Luna já sabe que cada um tem seu corpo e que é preciso amá-lo do jeito que ele é e que é importante se sentir segura com o corpo que tem porque ele quem carrega ela para todos os lados, que brinca, corre, come e pula.
Aos 6 anos as figuras femininas na vida da Luna são Frida Kahlo, Clarice Lispector e Anitta. Mulheres inteligentes e artistas. Uma que escolheu ser mãe, outra que não pôde ser mãe e outra que é mãe de cachorros. A Anitta além de músicas sensuais e adultas, tem um álbum de músicas para crianças que também dá pra rebolar muito a raba e um desenho absurdamente educativo. Para além de maternidade, elas são mulheres incríveis que produzem arte e, são reconhecidas por aquilo que produzem e não pelos seus corpos ou atravessadas por aprovação de nenhum homem. E é nesse carrossel de diversidade e liberdade dessas mulheres que tento fazer a Luna entender que ela pode tudo o que quiser e que também tá tudo bem se ela não quiser nada disso. E tudo isso tentando nos diastanciar o máximo que posso dos caminhos atravessados pela dor e violência…
Como mulher, sinto desde criança precisamos de munição para guerrear na configuração patriarcal. Me apeguei, uso toda hora e ensino a Luna a arma que mais dói neles: liberdade!