amor de criança.
‘amar alguém através dos olhos de uma criança.’
será que existe forma mais pura e mais afetuosa de amar alguém? amar alguém a partir da admiração de alguém que entende o amor da sua forma mais genuína é extremamente potente.
admiro quando a gente consegue localizar e sustentar o amor na adultez, mas e quando nós somos crianças… como se localiza o amor?
quando penso em ser amada quando criança, me vem a cena nítida de uma tarde qualquer de um fim de semana, correndo na rua da casa da bisavó e ela sentada em baixo da mangueira com sua cadeira de balanço de macarrão verde escuro. vestida com uma de suas bermudas escuras que ela usava por debaixo de suas saias, com seu sutiã bege e um tecido fininho verde que ela estava sempre com ele em mãos, pendurava em cada alça do seu sutiã numa tentativa quase vã de esconder suas vergonhas num dia de muito calor. ela gargalhava quando a gente caia e durante muito tempo foi lida como ruim por muitos, pra mim, ela dizia que a vida ia me derrubar muito mais feio se eu não soubesse caminhar. ela assoviava chamando o vento e me fazia observar como ele chegava… quase sempre vindo do lado esquerdo em redemoinhos de poeira que quando chegavam a sua frente, a poeira dissipava e o vento balançava as folhas e refrescava nossa pele. assim, ela me ensinava sobre a vida e sobre ancestralidade.
dadá, como minha trisavó a chamava, me amou intensamente com seu coração costurado com linhas que pescavam jatuaranas gordinhas para serem comidas com farinha d’água e alguns pedaços do seu corpo e liberdade, foram rompidos e colados na beira do rio pacaas novos enquanto ela subia o rio numa voadeira sem saber nadar pra chegar até seu sítio e ver seus gados e suas castanheiras. dadá, me ensinou diversas vezes o que era o amor. todos os dias me ensinou o que é o amor. me ensinou a caminhar nos caminhos que estou hoje, sem saber que chegaria até eles.
numa cama de hospital, em uma de suas tantas quedas, dadá ficou orgulhosa que eu já tinha idade pra ser acompanhante dela. ela confiava em mim e no meu potencial. dadá já não enxergava então, não conseguia ler e me perguntou o que eu fazia porque ela escutou barulho de páginas de livros e lápis escrevendo no papel, curioso né, mas ela tinha um ouvido muito afinado pro conhecimento. eu disse que estava estudando pra uma prova que logo chegaria e ela pediu que eu lesse em voz alta. e eu li. pela primeira vez, li pra minha avó qualquer coisa de um livro de história que a fez chorar muito. e ela disse: todo meu esforço valeu a pena, minha bisneta é estudada e vai realizar o sonho de ser quem quiser ser. o meu sonho era ser médica mas não consegui, já você minha filha, vai ser o que quiser!
ela me amava com olhos e o coração de 3x mãe. me contou várias histórias doloridas do que era ser uma mulher independente na época em que ela era jovem. dadá, foi violentada pela vida diversas vezes, mas nunca deixou de me tratar com dignidade e amor, nunca levantou a voz pra me corrigir e quando eu achei que tinha feito a maior merda da minha vida, ela me ligou dizendo que criança sempre é uma benção… não seria fácil, mas eu conseguiria porque ela me ensinou a viver e lidar com o mundo.
dadá me ensinou sobre o amor, sobre viver a vida, sobre comidas e sobre dignidade. dadá me ensina até hoje quando penso nela e em todas as coisas que nós vivemos juntas. apesar da minha pouca idade, dadá nunca julgou que eu não saberia sobre o que ela falava, sempre dizia que o tempo curaria tudo.
ontem, ao ir dormir chorando com medo, dadá veio até mim e penteou meus cabelos agora já adulta cantando pra mim alguma música de Nelson Gonçalves que ela sempre cantarolava quando cozinhava para mim, minha mãe e meu irmão. ela me colocou no colo, penteou meus cabelos e me curou. espero que eu possa ver a senhora de novo, dadá.
foi dadá que me ensinou, sem que eu soubesse, que eu sempre amaria perdidamente por aí com olhos de criança. dadá me ensinou que amaria com os olhos de criança o meu sagrado, a minha família, os meus amigos e amores mas agora tem me ensinado que preciso amar a mim mesma com olhos de criança mas com a sabedoria de uma anciã.
presente de aniversário pra minha Dadá querida que se foi há 4 anos, mas que seu aniversário sempre vibrará no meu peito. que benção a minha de ter uma ancestral tão linda, amorosa e sábia como ela. obrigada dona Damásia pelo privilégio de lhe conhecer, de ser amada e cuidada pela senhora enquanto teve vida. te amarei enquanto eu respirar.